24.3.09

Irmão Lobo


Uma obra sobre amizade e coragem

O Livro conta a história de Torak, um garoto que vive na Idade da Pedra e sobrevive aos perigos da floresta com a ajuda de um filhote orfão de lobo.

(MICHELLE PAVER; Editora: Rocco)

Leia o primeiro capítulo

Torak acordou com um susto de um sono que não pretendia ter.A fogueira queimava fraca. Agachou-se próximo ao frágilarcabouço de luz e examinou a vultosa escuridão da floresta. Nãoconseguiu enxergar nada. Não conseguiu ouvir nada. Teria ele voltado?Estaria agora ali fora, observando-o com seus olhos ardentes,homicidas?Sentia-se vazio e com frio. Sabia que precisava urgentemente decomida, e que seu braço doía, e que seus olhos estavam irritadospelo cansaço, mas não conseguia sentir realmente. A noite toda elevigiara os destroços do abrigo de ramos de abeto e observara seu paisangrar. Como aquilo pôde acontecer?Ainda ontem – ontem – eles haviam montado acampamento nocrepúsculo azul do outono. Torak fizera uma piada e seu pai gargalhou.Então a floresta explodiu. Corvos grasnaram. Pinheiros racharam.E do escuro sob as árvores surgiu uma escuridão mais profunda:uma imensa ameaça incontrolável na forma de urso.De repente a morte estava sobre eles. Um furor de garras. Umaconfusão de sons para fazer as orelhas sangrarem. No período deuma pulsação, a criatura despedaçara o abrigo deles, reduzindo-o alascas. No período de uma pulsação, ela rasgara um ferimento irregularna lateral do corpo de seu pai. Então foi embora, fundindo-secom a floresta tão silenciosamente quanto a neblina.Mas que tipo de urso arma emboscadas para homens – depois somesem fazer a matança? Que tipo de urso brinca com sua presa?E onde está ele agora?Torak não conseguia enxergar além da luz da fogueira, mas sabiaque a clareira, também, era uma ruína de árvores jovens quebradas esamambaias pisoteadas. Farejou seiva de pinheiro e terra rasgada.Ouviu o leve e triste murmurar do riacho a trinta passos de distância.O urso poderia estar em qualquer lugar.Ao lado dele, seu pai gemia. Lentamente abriu os olhos e olhoupara o filho, sem reconhecê-lo.O coração de Torak se apertou.– So... Sou eu – gaguejou. – Como se sente?A dor contorcia o magro rosto pardo do pai. Suas bochechasestavam tingidas de cinza, fazendo com que as tatuagens do clã sobressaíssempalidamente. O suor atapetava seu longo cabelo escuro.Seu ferimento era tão profundo que, quando Torak, desajeitadamente,estancou o sangue com barba-de-velho, viu as entranhas dopai brilharem à luz da fogueira. Teve que cerrar os dentes para evitarvomitar. Esperava que Pa não tivesse percebido – mas claro queele percebeu. Pa era um caçador. Ele percebia tudo.– Torak... – ofegou. Sua mão se estendeu, os dedos quentesagarrando-se aos de Torak tão ávidos quanto uma criança. Torakconteve-se. Filhos seguram a mão dos pais, e não o contrário.Ele tentava ser prático: ser um homem em vez de um menino.– Eu ainda tenho algumas folhas de milefólio – disse ele, tateandoa bolsa de remédios com a mão livre. – Talvez isso detenha o...– Fique com elas. Você também está sangrando.– Não dói – mentiu Torak. O urso o jogara contra um pé debétula, machucando suas costelas e ferindo profundamente o antebraçoesquerdo.– Torak... parta. Agora. Antes que ele volte.Torak encarou-o. Abriu a boca, mas não emitiu nenhum som.– Você precisa – insistiu o pai.– Não. Não. Não posso...– Torak... estou morrendo. Estarei morto quando o sol nascer.Torak apertou a bolsa de remédios. Havia um rugido em seusouvidos.– Pa...– Dê-me... o que preciso para a Jornada da Morte. Depois peguesuas coisas.A Jornada da Morte. Não. Não.Mas o rosto do pai estava inflexível.– Meu arco – pediu. – Três flechas. Você... fica com o resto.Aonde estou indo... a caça é fácil.Caiu uma lágrima no joelho da perneira de pele de gamo deTorak. Enfiou a unha do polegar na carne. Doeu. Forçou-se a se concentrarnisso.– Comida – arfou seu pai. – A carne seca. Você... leva toda.O joelho de Torak começou a sangrar. Ele continuou cutucando.Tentava não imaginar seu pai na Jornada da Morte. Tentava não seimaginar sozinho na floresta. Tinha apenas doze verões de idade.Não conseguiria sobreviver sozinho. Não sabia como.– Torak! Mexa-se!Pestanejando furiosamente, Torak alcançou as armas do pai e ascolocou a seu lado. Dividiu as flechas, furando os dedos nas afiadaspontas de sílex. Então colocou a tiracolo sua aljava e seu arco, e engatinhousobre os destroços para apanhar sua machadinha negra de basalto.Sua mochila de madeira de aveleira fora destruída no ataque;teve de abarrotar tudo o mais em seu gibão de couro, ou amarrar nocinturão.Alcançou o seu saco de dormir feito de couro de rena.– Leve o meu – murmurou o pai. – Você nunca... consertou oseu. E... troque as facas.Torak ficou horrorizado.– A sua faca não! Vai precisar dela!– Você precisará mais do que eu. E... será bom ter algo seu naJornada da Morte.– Pa, por favor. Não...Na floresta, um graveto estalou.Torak girou.A escuridão era total. Onde quer que olhasse as sombras tinhamforma de urso.Não havia vento.Não havia canto de pássaro.Apenas o crepitar do fogo e a batida de seu coração. A própriafloresta prendia a respiração.Seu pai lambeu o suor dos lábios.– Ele não está aqui – disse ele. – Em breve. Ele virá me buscar embreve... Depressa. As facas.Torak não queria trocar as facas. Isso seria um ponto final. Seupai, porém, olhava-o com uma intensidade que não admitia recusa.Apertando as mandíbulas com tanta força que doeu, Torakpegou a própria faca e colocou-a na mão de Pa. Em seguida, desamarroudo cinturão do pai a bainha de couro de gamo. A faca de Paera bela e mortal, com a lâmina de ardósia azul raiada na forma defolha de salgueiro, e o cabo de chifre de veado-vermelho preso comtendão de alce para uma melhor empunhadura. Enquanto Torakolhava para ela abaixo, a verdade o atingiu. Ele estava se preparandopara uma vida sem Pa.– Não vou deixar você – berrou. – Vou enfrentar ele, eu...– Não! Ninguém consegue enfrentar esse urso!Corvos voaram das árvores.Torak prendeu a respiração.– Escute com atenção – sibilou seu pai. – Um urso... qualquerurso... é o caçador mais forte da floresta. Você sabe disso. Mas esseurso... muito mais forte.Torak sentiu os pêlos dos braços se eriçarem. Olhando parabaixo nos olhos do seu pai,viu as pequeninas veias encarnadas, e, nocentro, a insondável escuridão.– O que quer dizer? – sussurrou. – O que...– Ele está... possuído. – O rosto do pai era assustador; ele nãoparecia mais com o Pa. – Alguns... demônios... do Outro Mundo...penetraram nele e o tornaram mau.Uma brasa faiscou. As árvores escuras inclinaram-se mais pertopara escutar.– Um demônio? – perguntou Torak.Seu pai fechou os olhos, reunindo forças.– Ele vive apenas para matar – falou, finalmente. – Com cadamorte... seu poder crescerá. Ele matará... tudo. A presa. Os clãs.Todos morrerão. A floresta morrerá... – deteve-se. – Em uma lua...será tarde demais. O demônio... muito forte.– Uma lua? Mas o que...– Pense, Torak! Quando o olho vermelho está mais alto no céu,é quando os demônios são mais fortes. Você sabe disso. É quando ourso será... invencível. – Pelejou para respirar. Sob a luz da fogueira,Torak viu a pulsação latejando em seu pescoço. Tão fraca: era comose fosse parar a qualquer momento. – Preciso que você... jure umacoisa – disse Pa.– Qualquer coisa.Pa estancou. – Siga para o norte. Muitos dias de caminhada.Encontre... a Montanha... do Espírito do Mundo.Torak encarou-o. – O quê?Os olhos de seu pai se abriram, e ele fitou entre os galhos acima,como se enxergasse coisas que ninguém mais podia. – Encontre-a –repetiu. – É a única esperança.– Mas... ninguém nunca a encontrou. Ninguém pode.– Você pode.– Como? Eu não...– O seu guia... vai encontrar você.Torak ficou aturdido. Nunca antes seu pai falara daquele modo.Ele era um homem prático; um caçador.– Não compreendo nada disso! – bradou. – Que guia? Por quepreciso encontrar a montanha? Estarei a salvo lá? É isso? A salvo dourso?Lentamente, o fitar de Pa deixou o céu e foi pousar no rosto dofilho. Parecia que ele estava imaginando o quanto mais Torak podiaagüentar.– Ora, você é muito jovem – disse ele. – Eu pensava que tinhamais tempo. Há muita coisa que não contei a você. Não... Não váme odiar depois por causa disso.Torak olhou-o horrorizado. Então, de um salto, ficou de pé.– Não posso fazer isso sozinho. Eu não deveria tentar encontrar...?– Não! – exclamou seu pai com uma força surpreendente. – Todaa sua vida eu mantive você afastado. Mesmo... do nosso próprio Clãdo Lobo. Permaneça longe dos homens! Se eles descobrirem você...o que você pode fazer...– O que quer dizer? Eu não...– Não há tempo – cortou o pai. – Agora jure. Sobre minha faca.Jure que vai encontrar a montanha, ou morrer tentando.Torak mordeu o lábio com força. A leste, por entre as árvores,uma luz cinzenta aumentava. Ainda não, pensou ele, em pânico. Porfavor, ainda não.– Jure – ciciou seu pai.Torak ajoelhou-se e apanhou a faca. Era pesada: a faca de umhomem, grande demais para ele. Desajeitadamente, passou-a peloferimento no antebraço. Em seguida, colocou-a sobre o ombro, ondea tira de pele de lobo, o totem de seu clã, estava cerzida ao seu gibão.Com uma voz insegura, ele fez o juramento.– Juro, pelo meu sangue nesta lâmina, e por cada uma de minhastrês almas... que encontrarei a Montanha do Espírito do Mundo. Oumorrerei tentando.Seu pai expirou. – Ótimo. Ótimo. Agora. Coloque as Marcas daMorte em mim. Depressa. O urso... não está longe.Torak sentiu a salgada ardência de lágrimas. Furiosamente,limpou-as esfregando-as.– Não tenho nenhum ocre – murmurou.– Pegue... minha.Desordenadamente, Torak encontrou a pequena bolsa de remédiofeita de ramificação de galhada de veado que fora de sua mãe.Desordenadamente, arrancou a tampa de carvalho e sacudiu umpouco do ocre vermelho na palma da mão.De repente, parou.– Não posso.– Pode sim. Por mim.Torak cuspiu na mão e fez uma pasta pegajosa com o ocre, osangue vermelho-escuro da terra, em seguida desenhou na pele deseu pai os pequenos círculos que ajudariam as almas a se reconhecereme permanecerem juntas após a morte.Primeiro, o mais delicadamente que pôde, removeu as botas decouro de castor do pai, e desenhou um círculo em cada calcanhar paraindicar a alma-nome. Depois desenhou outro círculo acima do coração,para indicar a alma-clã. Isso não foi fácil, pois o peito de seu paitinha uma cicatriz de um antigo ferimento, e por isso Torak conseguiuapenas um oval inclinado para um lado. Esperava que aquilo fosse osuficiente.Por último, fez a marca mais importante de todas: um círculo natesta para indicar a Nanuak, a alma-mundo. Quando terminou, eleestava engolindo lágrimas.– Melhor – murmurou o pai. Mas Torak percebeu com uma pontadade terror que a pulsação no pescoço dele estava mais fraca.– Você não pode morrer! – explodiu Torak.Seu pai olhou-o lastimoso e saudoso.– Pa, eu não vou deixar você, eu...– Torak. Você fez um juramento. – Novamente, fechou os olhos.– Agora. Você... fique com o chifre de remédio. Não preciso maisdele. Pegue suas coisas. Apanhe água para mim no rio. Depois... vá.Não vou chorar, disse Torak a si mesmo, ao enrolar o saco dedormir do pai e amarrá-lo nas costas; empurrou seu machado paradentro do cinturão; enfiou a bolsa de remédio dentro do gibão.Levantou-se e procurou o cantil de couro. Estava retalhado.Teria de trazer água em uma folha de azeda. Estava para ir, quando opai murmurou seu nome.Torak virou-se. – Sim, Pa?– Lembre-se. Quando estiver caçando, olhe atrás de você. Eu...sempre lhe falo. – Forçou um sorriso. – Você sempre... esquece.Olhe atrás de você. Sim?Torak fez que sim com a cabeça. Tentou retribuir o sorriso. Emseguida, foi cambaleante por entre as samambaias molhadas em direçãoao riacho.A luz aumentava e o ar tinha um odor fresco e doce. À sua voltaas árvores sangravam: escoando o dourado pinho-sangue pelostalhos que o urso lhes infligira. Alguns dos espíritos das árvoresgemiam baixinho na brisa da alvorada.Torak chegou ao riacho, onde a névoa flutuava acima das samambaiase os salgueiros arrastavam seus dedos na água gelada. Olhandorapidamente em volta, arrancou uma folha de azeda e seguiu em frente,as botas afundando no macio barro vermelho.Congelou.Ao lado de sua bota direita estava a pegada de um urso. Umapata dianteira: duas vezes o tamanho de sua própria cabeça, e tãofresca que ele podia ver os pontos onde as longas e ferozes garrashaviam perfurado profundamente o barro.Olhe atrás de você, Torak.Ele girou.Salgueiros. Amieiro. Pinheiro.Nada de urso.Um corvo voou baixo até um galho ali perto, fazendo com queele desse um pulo. A ave recolheu suas asas negras e fitou-o comolhos grandes e redondos. Em seguida sacudiu a cabeça, grasnouuma vez, e voou para longe.Torak olhou na direção que ele parecera indicar.Teixo escuro. Abeto gotejante. Denso. Impenetrável.Bem no fundo, porém – não mais do que dez passos de distância–, um agitar de galhos. Havia algo ali. Algo enorme.Tentou evitar que os pensamentos de pânico transbordassem,mas sua mente se tornara vazia.O problema com um urso, seu pai sempre dizia, é que ele consegue se movimentartão silenciosamente quanto a respiração. Ele pode estar observando você adez passos de distância sem que você perceba. Contra um urso não há nenhuma defesa.Você não é capaz de correr mais depressa. Não consegue subir mais alto. Nãopode lutar com ele sozinho. Tudo que pode fazer é aprender os modos dele, e tentarconvencê-lo de que você não é uma ameaça nem é uma presa.Torak forçou-se a ficar imóvel. Não corra. Não corra. Talvez elenão saiba que você está aqui.Um leve sibilar. Novamente os galhos se agitaram.Ele ouvia o furtivo farfalhar enquanto a criatura avançava em direçãoao abrigo: em direção a seu pai. Esperou num rígido silêncio o ani-mal passar. Covarde!, gritou no interior de sua cabeça. Você o deixoupassar sem mesmo tentar salvar Pa!Mas o que você podia fazer?, perguntou a parte menor de suamente que ainda conseguia pensar direito. Pa sabia o que aconteceria.Foi por isso que mandou você apanhar água. Sabia que a feraestava vindo atrás dele...– Torak! – surgiu o grito desesperado de seu pai. – Corra!Corvos irromperam das árvores. Um rugido sacudiu a floresta –sem parar, até a cabeça de Torak arrebentar.– Pa! – gritou ele.– Corra!Novamente a floresta foi sacudida. Novamente surgiu o grito deseu pai. E então, parou de repente.Torak tapou a boca com o punho.Por entre as árvores, viu de relance uma enorme sombra escuranos destroços do abrigo.Virou-se e correu.

1 comentários:

jade tojeiro on 21 de maio de 2009 às 05:57 disse...

adoreii eu to lendo ele pra escola era para um trabalho, e esse site ajudo muito!

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