24.3.09

Velocidade

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Neste livro, Billy Wiles é um rapaz pacato e trabalhador que leva uma vida calma e comum. Mas isso está prestes a mudar. Certa noite, após o seu turno de trabalho como barman, ele encontra no limpador de pára-brisa de seu carro um bilhete datilografado - 'Se você não levar este bilhete à polícia nem envolvê-la, vou matar uma linda professora loura em algum lugar do condado de Napa. Se levar este bilhete à polícia, matarei uma mulher idosa que faz obras de caridade. Você tem seis horas pra decidir. A escolha é sua.' Parece uma brincadeira doentia, e Lanny Olsen, um policial amigo de Billy, concorda com isso. Seu conselho a Billy era ir para casa e deixar aquilo de lado. Além do mais, os que eles poderiam fazer mesmo se levassem o bilhete a sério? Nenhum crime havia sido cometido. No entanto, menos de 24 horas depois, uma jovem e bela professora loura é encontrada morta, e Billy é o culpado - ele não convenceu a polícia a se envolver no caso. Agora ele tem um novo bilhete, um outro prazo, um outro ultimato... e duas novas vidas por um fio.

(Dean Koontz; Editora: Nova Fronteira)

Leia o primeiro capítulo

Com chope e um sorriso, Ned Pearsall brindou seu falecido vizinho,Henry Friddle, cuja morte lhe agradava tremendamente.Henry tinha sido morto por um anão de jardim. Caiu do telhadode sua casa de dois andares sobre aquela figura jovial. Oanão era feito de concreto. Henry, não.Pescoço partido, crânio rachado: morreu na hora.Essa morte por anão tinha acontecido havia quatro anos. NedPearsall ainda brindava o falecimento de Henry pelo menos umavez por semana.Agora, num banco perto da curva do lustroso balcão de mogno,um forasteiro, o único outro freguês, estava curioso com anatureza persistente da animosidade de Ned.— Até que ponto o coitado podia ser um vizinho tão ruim paravocê continuar com essa indignação contra ele?Normalmente, Ned teria ignorado a pergunta. Gostava aindamenos de turistas do que de donuts.O bar oferecia tigelas grátis de donuts porque eram baratas.Ned preferia manter sua sede com amendoins bem salgados.Para que Ned continuasse dando gorjetas, Billy Wiles, que serviano balcão, ocasionalmente lhe dava um saco de amendoins salgados.Na maioria das vezes, Ned tinha de pagar pelos amendoins.Isso o deixava furioso, fosse por não conseguir entender as realidadeseconômicas de se manter um bar ou por gostar de ficarfurioso — provavelmente, a segunda hipótese.Apesar de ter uma cabeça que lembrava uma bola de squash eos ombros pesados e redondos de um lutador de sumô, Ned só eraatlético se você achasse que papo furado de bar e ressentimentosse qualificavam como esportes. Nessas modalidades, ele era dignodas Olimpíadas.Se o assunto era Henry Friddle, Ned podia ser tão falante comos forasteiros quanto com quem morava em Vineyard Hills desdeque nasceu. Quando, como agora, o único freguês além dele eraum estranho, Ned achava o silêncio ainda menos agradável doque a conversa com um “diabo de um forasteiro”.O próprio Billy nunca fora muito falante, nunca fora daquelesbarmen que consideravam o balcão um palco. Só ficava escutando.Ao forasteiro, Ned declarou:— Henry Friddle era um porco.O estranho tinha cabelos pretos como carvão, com traços grisalhosnas têmporas, olhos cinzentos brilhando e voz suavementeressonante.— Esta é uma palavra forte: porco.— Sabe o que o tarado estava fazendo em cima da casa? Tentandomijar na janela da minha sala de jantar.Enxugando o balcão, Billy Wiles nem olhou para o turista.Tinhaouvido a história tantas vezes que já sabia como as pessoasreagiam a ela.— Friddle, o porco, achou que a altura daria mais distância aojorro — explicou Ned.— O que ele era? — perguntou o estranho. — Engenheiro aeronáutico?— Professor universitário. Ensinava literatura contemporânea.— Talvez esse tipo de leitura o tenha levado ao suicídio — disseo turista, o que o tornou mais interessante do que Billy haviapensado a princípio.— Não, não — reagiu Ned, impaciente. — A queda foi acidental.— Estava bêbado?— Por que acha que ele estaria bêbado?O estranho deu de ombros.— Ele subiu num telhado para urinar na sua janela.— O sujeito era doente — explicou Ned, batendo com um dedono copo vazio para indicar que queria outra bebida.Enquanto tirava o chope, Billy falou:— Henry Friddle era consumido pela vingança.Depois de uma comunhão silenciosa com sua cerveja, o turistaperguntou a Ned Pearsall:— Vingança? Então, você urinou na janela de Friddle primeiro?— Não foi a mesma coisa, de jeito nenhum — alertou Ned, numtom áspero que aconselhava o estranho a evitar julgamentos.— Ned não fez isso de cima do telhado — explicou Billy.— É mesmo. Fui até a casa dele, como homem, parei no gramadoe mirei na janela da sala de jantar.— Na hora, Henry e a mulher estavam jantando — completouBilly.Antes que o turista pudesse exprimir repulsa pelo momento daagressão, Ned falou:— Estavam comendo codorna, pelo amor de Deus!— Você mijou na janela porque eles estavam comendo codorna?Ned bufou, exasperado.— Não, claro que não. Eu pareço maluco?E revirou os olhos para Billy.Billy ergueu as sobrancelhas como se dissesse: o que você esperade um turista?— Só estou tentando mostrar como eles eram pretensiosos —esclareceu Ned —, sempre comendo codorna, lesmas ou acelga.— Sacanas metidos a besta — disse o turista, com um temperotão leve de zombaria que Ned Pearsall não o detectou, masBilly sim.— Exato — confirmou Ned. — Henry Friddle tinha um Jaguar;e a mulher tinha um carro... você não vai acreditar: um carro feitona Suécia.— Detroit era comum demais para eles — supôs o turista.— Exato. Como é que alguém pode ser esnobe a ponto de trazerum carro lá da Suécia?— Aposto que eram apreciadores de vinho.— É isso aí! Você conhecia os dois?— Só conheço o tipo. Tinham um monte de livros.— Acertou na mosca. Eles ficavam sentados na varanda dafrente, cheirando vinho, lendo livros.— E em público. Imagine só. Mas, se você não mijou na janelada sala de jantar porque eles eram esnobes, por que fez isso?— Mil motivos — garantiu Ned. — O incidente do gambá. Oincidente do adubo de gramado. As petúnias mortas.— E o anão de jardim — acrescentou Billy, enquanto lavavacopos na pia do balcão.— O anão de jardim foi a gota d’água — concordou Ned.— Entendo que alguém seja levado à urinação agressiva porcausa de flamingos de plástico rosa-choque — disse o turista. —Mas, francamente, por causa de um anão!Ned fez uma careta, lembrando-se da afronta.— Ariadne fez o anão com a minha cara.— Ariadne?— A mulher de Henry Friddle. Já ouviu nome mais pretensioso?— Bem, o sobrenome Friddle faz com que fique mais pé-nochão.— Ela era professora de arte na mesma faculdade. Esculpiu pessoalmenteo anão, criou o molde, derramou o concreto e pintou.— Ter uma escultura inspirada em você pode ser uma honra.A espuma de chope no lábio superior de Ned lhe deu umaaparência encolerizada quando ele protestou.— Era um anão, meu chapa. Um anão bêbado. O nariz eravermelhocomo uma maçã. Ele segurava uma garrafa de cervejaem cada mão.— E a braguilha estava aberta — acrescentou Billy.— Muitíssimo obrigado por lembrar — resmungou Ned. —Pior, tinha uma cabeça e um pescoço de ganso morto saindo dacalça.— Que criativo! — comentou o turista.— A princípio, eu não sabia que diabo aquilo significava...— Simbolismo. Metáfora.— É, é. Eu deduzi. Todo mundo que passava pela casa delesolhava aquilo e morria de rir às minhas custas.— Nem seria preciso ver o anão para isso — observou o turista.Entendendo mal, Ned concordou:— É mesmo. Só de ouvir dizer, as pessoas riam. Por isso, arrebenteio anão com uma marreta.— E eles processaram você.— Pior. Puseram outro anão. Achando que eu ia arrebentar oprimeiro, Ariadne tinha moldado e pintado um segundo.— E eu que achava que a vida era tranqüila aqui na regiãovinícola!— Aí — continuou Ned —, eles disseram que, se eu arrebentasseo segundo, iam colocar um terceiro no gramado, e além disso,iriam fazer um monte e vender a preço de custo a qualquer umque quisesse um anão Ned Pearsall.— Parece uma ameaça inócua — disse o turista. — Haveriagente para comprar uma coisa dessas?— Dezenas de pessoas — garantiu Billy.— Esta cidade virou um lugar ruim desde que o pessoal dopatê-com-brie começou a vir de São Francisco — observou Ned,carrancudo.— E como você não ousou dar marretadas no segundo anão,ficou sem outra saída além de mijar na janela deles.— Exato. Mas não fui assim, de qualquer jeito. Pensei na situaçãodurante uma semana. Depois, esguichei na casa deles.— Em seguida, Henry Friddle subiu no telhado com a bexigacheia, sedento de justiça.— É. Mas esperou até eu fazer um jantar de aniversário paraa minha mãe.— Imperdoável — garantiu Billy.— A máfia ataca membros inocentes da família dos outros?— perguntou Ned, indignado.Ainda que a pergunta fosse retórica, Billy trabalhou pelagorjeta:— Não. A máfia tem classe.— Uma palavra que esses professores nem sabem soletrar —disse Ned. — Mamãe estava fazendo 76 anos. Podia ter tido umataque cardíaco.— Então — insistiu o turista —, enquanto tentava urinar najanela de sua sala de jantar, Friddle caiu do telhado e quebrou opescoço no anão Ned Pearsall. Bem irônico.— Não sei se foi irônico — respondeu Ned. — Mas, sem dúvida,foi doce.— Conte o que sua mãe disse — instigou Billy.Depois de um gole de chope, Ned contou:— Mamãe disse: querido, louve o Senhor. Isso prova que Deusexiste.Depois de um momento para absorver essas palavras, o turistaobservou:— Ela parece uma mulher bem religiosa.— Nem sempre foi. Mas aos 72 anos pegou pneumonia.— Sem dúvida, é conveniente ter Deus num momento assim.— Mamãe achou que, se Deus existisse, talvez fosse salvála.Se não existisse, ela não perderia nada além de algum temporezando.— O tempo é nosso bem mais precioso — alertou o turista.— Certo. Mas mamãe não gastava muito tempo, porque conseguiarezar vendo televisão.— Que história inspiradora!O turista pediu uma cerveja.Billy abriu uma pretensiosa garrafa de Heineken, pegou outrocopo, gelado, e sussurrou:— Esta é por conta da casa.— Gentileza sua. Obrigado. Estive pensando que, para umbarman, você é discreto e tem fala mansa, mas agora talvez eu entendapor quê.De seu posto solitário mais adiante no balcão, Ned Pearsalllevantou o copo num brinde:— À Ariadne. Descanse em paz.Embora possa ter sido contra a sua vontade, o turista se interessoude novo. Perguntou a Ned:— Não foi outra tragédia com um anão, foi?— Câncer. Dois anos depois de Henry cair do telhado. Eu gostariaque isso não tivesse acontecido.Enquanto derramava a Heineken no copo inclinado, o estranhofalou:— A morte tem a capacidade de colocar em perspectiva nossaspequenas questões mesquinhas.— Sinto falta dela — disse Ned. — A dona tinha os peitõesmais espetaculares, e nem sempre usava sutiã.O turista se remexeu.— Ela trabalhava no jardim ou ia passear com o cachorro— lembrou Ned, quase sonhador — e aquele belo par de tetasbalançava e bamboleava de um jeito tão doce que era de tirar ofôlego.O turista verificou o próprio rosto no espelho atrás do balcão,talvez para ver se aparentava estar tão pasmo quanto se sentia.— Billy — perguntou Ned —, ela não tinha as tetas mais belasque a gente podia ter esperança de ver?— Tinha — concordou Billy.Ned desceu do banco, cambaleou em direção ao banheiro masculinoe parou junto ao turista.— Mesmo quando o câncer acabou com ela, as mamas nãoencolheram. Quanto mais magra ficava, maiores pareciam, proporcionalmente.Perto de morrer, ela era um tesão. Que desperdício,hein, Billy?— Que desperdício — ecoou Billy, enquanto Ned se encaminhavapara o banheiro.Depois de um silêncio compartilhado, o turista disse:— Você é um sujeito interessante, Billy Barman.— Eu? Nunca mijei na janela de ninguém.— Você é como uma esponja, acho. Absorve tudo.Billy pegou um pano de pratos e poliu alguns copos de cervejaque tinham sido lavados e enxugados.— Mas também é uma pedra — continuou o turista. — Porque,se for espremido, não devolve nada.Billy continuou polindo os copos.Os olhos cinzentos, brilhando, iluminaram-se ainda mais.— Você é um homem com uma filosofia, o que é incomumatualmente, quando a maior parte das pessoas não sabe quem é,em que acredita, nem por quê.Esse também era um estilo de papo de bar com o qual Billy estavafamiliarizado, mas que não ouvia com freqüência. Comparadasàs arengas de Ned Pearsall, essas observações bêbadas podiam parecereruditas; mas não passavam de psicanálise regada a cerveja.Ficou desapontado. Por um breve instante, o turista parecera diferentedos bundões usuais que esquentavam o vinil dos bancos.Sorrindo, balançando a cabeça, Billy falou:— Filosofia. Você me dá crédito demais.O turista tomou um gole de Heineken.Ainda que não tivesse pretendido dizer mais, Billy ouviu-secontinuando:— Fique na moita, fique quieto, mantenha a coisa simples, nãoespere muito, curta o que tem.O estranho sorriu.— Seja auto-suficiente, não se envolva, deixe o mundo ir parao inferno, se quiser.— Talvez — admitiu Billy.— Digamos que não é Platão, mas é uma filosofia.— Você tem alguma filosofia?— Neste momento, acredito que minha vida será melhor emais significativa se eu simplesmente evitar outras conversas como Ned.— Isso não é filosofia. É fato.*Às 16h10, Ivy Elgin veio trabalhar. Era uma garçonete boacomo qualquer outra, e objeto de desejos sem igual.Billy gostava de Ivy, mas não sentia desejo por ela. A falta detesão dele o tornava único entre os homens que trabalhavam oubebiam no bar.Ivy tinha cabelo cor de mogno, olhos límpidos cor de conhaquee o corpo que Hugh Hefner, fundador da Playboy, passara avida procurando.Mesmo com 24 anos, parecia genuinamente não perceber queera a fantasia masculina essencial em carne e osso. Jamais era sedutora.Às vezes, podia flertar, mas só de modo cativante.A beleza e a sinceridade quase infantil formavam uma combinaçãotão erótica que seu sorriso já bastava para deixar um sujeitocomum pegando fogo.— Oi, Billy — disse Ivy, indo direto ao balcão. — Vi um gambámorto na Old Mill Road, a uns quatrocentos metros da KornellLane.— Morto naturalmente ou atropelado?— Totalmente atropelado.— O que você acha que isso significa?— Nada específico, por enquanto — respondeu ela, entregandoa bolsa para ele guardar atrás do balcão. — É a primeira coisamorta que vejo em uma semana, portanto, depende de outros cadáveresaparecerem, se aparecer algum.Ivy acreditava que era uma arúspice. Os arúspices, uma classede sacerdotes na Roma antiga, adivinhavam o futuro nas entranhasde animais mortos nos sacrifícios.Eram respeitados, até mesmo reverenciados pelos outros romanos,mas provavelmente não recebiam muitos convites parafestas.Ivy não era mórbida. A aruspicação não ocupava o centro desua vida. Raramente falava sobre isso aos fregueses.E não tinha estômago para remexer entranhas. Para uma arúspice,era exageradamente sensível.Em vez disso, encontrava significados na espécie do cadáver,nas circunstâncias de sua descoberta, na posição deste emrelaçãoaos pontos cardeais e em outros aspectos ocultos de seuestado.Suas previsões raramente se confirmavam, se é que se confirmavam,mas Ivy persistia.— O que quer que isso signifique — disse a Billy, enquantopegava o bloco de pedidos e um lápis —, é mau sinal. Um gambámorto nunca indica boa sorte.— Já notei isso.— Especialmente quando o focinho está apontado para o nortee o rabo para o leste.Homens sedentos passaram pela porta logo depois de Ivy, comose ela fosse a miragem de um oásis que eles tivessem perseguidoo dia inteiro. Apenas alguns sentaram-se junto ao balcão; osoutros a mantinham indo de mesa em mesa.Ainda que a freguesia de classe média do bar não fosse gastadora,as gorjetas recebidas por Ivy excediam o que ela poderiaganhar se obtivesse um doutorado em economia.Uma hora depois, às cinco, Shirley Trueblood, a segunda garçoneteda noite, chegou para o trabalho. Com 56 anos, atarracada,usando perfume de jasmim, Shirley tinha seu próprio séquito.Certos homens nos bares sempre queriam uma figura materna.Algumas mulheres também.Ben Vernon, o cozinheiro do turno do dia, especializado empedidos rápidos,foi para casa. O cozinheiro do turno da noite,Ramon Padillo, assumiu o posto. O local oferecia apenas comidade bar: cheeseburgers, batatas fritas, asas de galinha com molhopicante, quesadillas, nachos...Ramon tinha notado que, nas noites em que Ivy Elgin trabalhava,os pratos temperados eram vendidos em maior quantidadedo que quando a garçonete não era ela. Os caras pediam muitomais coisas com molho apimentado, gastavam muito mais vidrosde Tabasco e pediam jalapeños fatiados nos hambúrgueres.— Acho — disse uma vez a Billy — que estão inconscientementeacumulando calor nas gônadas para estar preparados, casoela ceda a eles.— Ninguém nessa espelunca tem a menor chance com Ivy —garantiu Billy.— Nunca se sabe — disse Ramon timidamente.— Não diga que você também está comendo pimenta.— Tanta, que às vezes tenho uma azia de matar, à noite. Masestou pronto.Com Ramon, chegou o barman da noite, Steve Zillis, cujo turnose sobrepunha ao de Billy durante uma hora. Com 24 anos, eradez anos mais novo do que Billy, mas vinte anos menos maduro.Para Steve, o auge do humor sofisticado era qualquer versinhosuficientemente obsceno para fazer homens adultos ruborizarem.Era capaz de dar nós num cabinho de cereja usando apenas alíngua, encher a narina direita com amendoins e dispará-los, comprecisão, num copo-alvo, e soprar fumaça de cigarro pela orelhadireita.Como sempre, Steve pulou por cima da portinhola do balcão,em vez de empurrá-la.— Como vão as coisas, Gafanhoto?— Falta uma hora para eu sair e pegar minha vida de volta— respondeu Billy.— Isso aqui é vida — protestou Steve. — É o centro da ação.A tragédia de Steve Zillis era que falava a sério. Para ele, essebar comum era um cabaré cheio de glamour.Depois de amarrar um avental, pegou três azeitonas numa tigela,fez malabarismos com elas em velocidade espantosa e pegouuma de cada vez com a boca.Quando dois bêbados no balcão aplaudiram ruidosamente,Steve se deleitou com os aplausos como se fosse o principal tenorna Metropolitan Opera e tivesse obtido a adulação de uma platéiarefinada e erudita.Apesar da aflição da companhia de Steve Zillis, a última horado turno de Billy passou depressa. O bar tinha movimento suficientepara manter dois barmen ocupados enquanto os beberrõesde fim de tarde atrasavam a ida para casa e os bebuns da noitechegavam.Na medida do possível, Billy gostava do local nessa hora detransição. Os fregueses estavam no auge da coerência e mais felizesdo que ficariam mais tarde, quando o álcool os levasse àmelancolia.Como as janelas davam para o leste e o sol estava no oeste, aluz mais suave do dia pintava os vidros. As luminárias do teto davamum brilho acobreado aos lambris e aos reservados de mognovermelho queimado.O ar fragrante estava cheio dos perfumes de piso de madeiraao molho de cerveja choca, cera de vela, cheeseburgers, cebolafrita.Mas Billy não gostava do lugar o bastante para se demoraralém do fim de seu turno. Em vez disso, partia silencioso como umfantasma se desmaterializando para longe da casa assombrada.Lá fora, restavam menos de duas horas de luz do verão. Océu era de um elétrico azul Maxfield Parrish no leste e de um azulmais claro no oeste, onde o sol ainda o descorava.Enquanto chegava perto de seu Ford Explorer, notou um retângulode papel branco sob o limpador de pára-brisa do lado domotorista.Atrás do volante, com a porta ainda aberta, desdobrou o papel,esperando encontrar algum tipo de panfleto anunciando umlava-a-jato ou serviço de empregadas domésticas. Descobriu umamensagem bem digitada:Se você não levar este bilhete à polícia nem envolvê-la, voumatar uma linda professora loura em algum lugar no condadode Napa.Se levar este bilhete à polícia, matarei uma mulher idosa quefaz obras de caridade.Você tem seis horas para decidir. A escolha é sua.Naquele instante, Billy não sentiu o mundo se inclinar debaixodele, mas o mundo se inclinou. O mergulho ainda não tinhacomeçado, mas começaria. Logo.

Destemida 3

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Destemida 3 - O Tesouro do Castelo do Pantano

Feitiços, fantasmas e um castelo no meio do pântano são os desafios que aguardam Lily Quench nesta história. A heroína e seus amigos poderão até viajar no tempo e no espaço para enfrentar seus arquiinimigos.

(Natalie Jane Prior; Editora: Fundamento)

Leia o primeiro capítulo

O céu sobre a ilha de Skansey estava claro e azul. No alto da Colina do Tempo Bom, acima de seu pomar de macieiras, Lily Quench olhava ansiosamente o horizonte, procurando os sinais de que um dragão se aproximava. Seus amigos, o Rei Leonel e a Rainha Evangelina de Ashby, viriam visitá-la. Lily já tinha varrido sua cabana e preparado um bolo e biscoitos; havia trocado a roupa de cama e ido até o depósito de maçãs, que ficava acima de seu quarto, para escolher os melhores, mais vermelhos e reluzentes frutos da colheita do último outono. Então, ela tinha subido a colina para assistir à chegada de seus visitantes reais. A Rainha Dragão havia prometido que estaria de volta a tempo de pegar a hora do chá da tarde, por isso ela aguardava a chegada deles a qualquer momento.Lily fez umas guirlandas de margaridas e sentou-se na grama alta, olhando tranqüilamente a ilha lá embaixo. Podia ver sua pequena cabana vermelha entre as macieiras, ao pé da colina, a praia na enseada onde a Rainha Dragão gostava de aterrissar e suas ovelhas pastando calmamente na grama verde e macia. Na água, a alguns quilômetros de distância, dava para ver o vulcão onde a Rainha Dragão dormia, em uma caverna debaixo da cratera cheia de lama fervente. NaqueleO olho na gramadia, umas poucas baforadas de fumaça saíam de lá, mas eram tão finas que pareciam nuvens bebês. Lily olhou para o céu, viu uma pequenina forma vermelha destacando-se contra o sol da tarde e pôs-se de pé em um pulo. Se corresse, daria tempo de colocar a chaleira com o chá pronto na mesa antes de suas visitas chegarem.Lily começou a correr colina abaixo, mas havia dado apenas algumas passadas quando seu pé pisou em um tufo de samambaias e sentiu-se escorregando para o nada. Soltando um grito por causa do susto, ela se inclinou para a frente e caiu no chão com um som abafado.– Ôôôô!Lily rolou para o lado e sentou-se. Perto dela, aberto em meio ao tufo de samambaias amassadas, havia o que aparentava ser um buraco de toca de coelho. O estranho era que aquilo parecia um olho com pestanas verdes em volta. Lily engatinhou com cuidado para perto dele e afastou as samambaias. O buraco era, na verdade, muito maior do que ela havia pensado inicialmente, e uma borda de tijolos antigos ainda podia ser vista em alguns lugares, por baixo da lama, como a beirada de acabamento da parte superior de um poço de água. O pé dela havia tocado apenas a borda. Um passo ou dois para a esquerda e ela teria desaparecido completamente.– Que lugar estranho para um poço – Lily olhou em volta procurando algum sinal de ruínas de uma casa ou construção que algum dia pudesse ter utilizado aquilo. Sua cabana tinha o seu próprio poço na porta dos fundos, e ela não imaginava por que alguém iria querer escalar até o topo da colina para pegar água. De repente, um cheiro esquisito saiu pela abertura do poço: um cheiro de algo úmido e frio, como um pântano ou brejo. Lily se encolheu tremendo, como se, subitamente, estivesse sentindo frio.Ela olhou para cima. Como sempre, o céu estava azul. Havia andorinhas e umas poucas nuvens brancas, que pareciam carneirinhos. A distância, ela podia ver suas ovelhas movendo-se lentamente peloscampos. Mas, com toda a certeza, havia uma estranha mudança no ar, como se estivesse prestes a chover.– Que esquisito – uma vez mais Lily examinou os tijolos arruinados. Estava claro que eram muito, muito velhos. Os tijolos eram de um marrom avermelhado e do mesmo estranho formato achatado que tinham aqueles da parte mais antiga do Castelo de Ashby. Lily começou a sentir uma estranha comichão, como o pinicar de alfinetes e agulhas, em seu cotovelo esquerdo. Provavelmente, qualquer outra pessoa teria ignorado isso. Mas Lily era uma Quench, nascida de uma antiga linhagem de matadores de dragões e aventureiros, e a pequena marca de pele escamosa como a de um dragão em seu braço era como um barômetro mágico que a avisava quando um perigo se aproximava.Esquecendo-se de suas visitas, Lily afastou as samambaias em volta da borda do poço e começou a raspar para fora a sujeira de cima dos tijolos. A essa altura, tomou outro susto.O poço tinha pestanas esculpidas em baixo-relevo na pedra.Um caminho em ruínas trilhava a descida da Colina do Tempo Bom, mas desaparecia logo adiante, debaixo da grama. Antigamente, as pessoas deviam usá-lo para chegar ao poço, mas alguma coisa dizia à Lily que elas não vinham em busca de água. Em um impulso, ela inclinou-se sobre a borda e espiou lá dentro. Não conseguia enxergar nada, mas o estranho cheiro de umidade aumentou e tornou-se mais forte até que fez com que os cabelos de sua nuca se arrepiassem. Então, de repente, seu cotovelo começou a pinicar tão forte que doeu.A água estagnada começou a subir pelo poço, ou a própria Lily começou a descer para ir ao encontro dela, não sabia dizer ao certo qual das duas coisas estava acontecendo. Ela sentiu uma lufada de ar frio em sua face e viu um rosto que reconheceu. Estava mais velho do que da última vez que o havia visto na neve e no gelo das Montanhas Negras, e a expressão nele era mais dura, mas não havia dúvida de quem era.O garoto no fundo do poço olhou para cima, e Lily soube que ele também a tinha visto. Ele começou a dizer alguma coisa que ela não conseguiu ouvir e, então, estendeu a mão para ela. Lily também estendeu a dela para ele. Gritou o seu nome, “Gordon!”, e o som foi ecoando poço abaixo. Uma tremenda força de atração tomou-a, como se alguma coisa ou alguém a estivesse pressionando para pular dentro do poço. Lily agarrou-se na borda de tijolos e, então, a magia inexplicavelmente perdeu a intensidade. Gordon abaixou o braço, a força de atração diminuiu, e seu rosto começou a sumir, como se um véu escuro tivesse sido baixado sobre a cena.Lily esforçou-se para alcançá-lo.– Gordon! Volte!– Não, Lily – dessa vez sua voz foi ouvida por Lily claramente. – Eu quero que você venha até mim.Lily caiu para trás, fazendo um barulho surdo no acabamento duro da beirada do poço, e desmaiou.

destemida 2

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Destemida 2 - As montanhas negras

Depois que descobriu ser descendente de uma família de caçadores de dragões. Lily Guench passa a ser a esperança das Terras de Ashby. Netse volume, a protagonista adolescente da série deve encontrar os lírios azuis para livrar seu reino da vingança do Conde Negro.Lily Quench é uma garota corajosa que, com sua amiga Rainha Dragão, defende as Terras de Ashby de muitos perigos.Muitas peripécias e surpresa aguardam Lily.

(Natalie Jane Prior; Editora Fundamento)

destemida 1

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Destemida 1 - Olhos do Dragão

Lily está super triste - sua avó, Úrsula, acaba de morrer. Agora é só ela no mundo. E não é que para piorar a situação, o Capitão Amaro e a guarda de Águas de Ashby invandem sua casa? Tem um dragão nas redondezas, assustando e destruíndo tudo pela frente, e Lily é a única que pode fazer alguma coisa. Ela é a última descendente de destemida família Quench, os caçadores de dragões. E agora? Será que ela terá a mesma coragem de seus ancestrais? E se o sangue Varaverde, da linhagem de sua mãe, falar mais alto?

(Natalie Jane Prior; Editora Fundamento)

A Caverna do Medo

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Cheio de aventura, magia e fantasia

O livro traz os personagens Lief, Barda e Jasmine em uma missão: libertar seu povo, que etá escravizado na Terra das Sombras. Tirania do Senhor das Sombras sobre o reino de Deltora terminou graças ao poder do Cinturão de Deltora. Contudo, é preciso ficar atento - o inimigo foi derrotado, mas não destruído.

(Emily Rodda; Editora: Fundamento)

Irmão Lobo

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Uma obra sobre amizade e coragem

O Livro conta a história de Torak, um garoto que vive na Idade da Pedra e sobrevive aos perigos da floresta com a ajuda de um filhote orfão de lobo.

(MICHELLE PAVER; Editora: Rocco)

Leia o primeiro capítulo

Torak acordou com um susto de um sono que não pretendia ter.A fogueira queimava fraca. Agachou-se próximo ao frágilarcabouço de luz e examinou a vultosa escuridão da floresta. Nãoconseguiu enxergar nada. Não conseguiu ouvir nada. Teria ele voltado?Estaria agora ali fora, observando-o com seus olhos ardentes,homicidas?Sentia-se vazio e com frio. Sabia que precisava urgentemente decomida, e que seu braço doía, e que seus olhos estavam irritadospelo cansaço, mas não conseguia sentir realmente. A noite toda elevigiara os destroços do abrigo de ramos de abeto e observara seu paisangrar. Como aquilo pôde acontecer?Ainda ontem – ontem – eles haviam montado acampamento nocrepúsculo azul do outono. Torak fizera uma piada e seu pai gargalhou.Então a floresta explodiu. Corvos grasnaram. Pinheiros racharam.E do escuro sob as árvores surgiu uma escuridão mais profunda:uma imensa ameaça incontrolável na forma de urso.De repente a morte estava sobre eles. Um furor de garras. Umaconfusão de sons para fazer as orelhas sangrarem. No período deuma pulsação, a criatura despedaçara o abrigo deles, reduzindo-o alascas. No período de uma pulsação, ela rasgara um ferimento irregularna lateral do corpo de seu pai. Então foi embora, fundindo-secom a floresta tão silenciosamente quanto a neblina.Mas que tipo de urso arma emboscadas para homens – depois somesem fazer a matança? Que tipo de urso brinca com sua presa?E onde está ele agora?Torak não conseguia enxergar além da luz da fogueira, mas sabiaque a clareira, também, era uma ruína de árvores jovens quebradas esamambaias pisoteadas. Farejou seiva de pinheiro e terra rasgada.Ouviu o leve e triste murmurar do riacho a trinta passos de distância.O urso poderia estar em qualquer lugar.Ao lado dele, seu pai gemia. Lentamente abriu os olhos e olhoupara o filho, sem reconhecê-lo.O coração de Torak se apertou.– So... Sou eu – gaguejou. – Como se sente?A dor contorcia o magro rosto pardo do pai. Suas bochechasestavam tingidas de cinza, fazendo com que as tatuagens do clã sobressaíssempalidamente. O suor atapetava seu longo cabelo escuro.Seu ferimento era tão profundo que, quando Torak, desajeitadamente,estancou o sangue com barba-de-velho, viu as entranhas dopai brilharem à luz da fogueira. Teve que cerrar os dentes para evitarvomitar. Esperava que Pa não tivesse percebido – mas claro queele percebeu. Pa era um caçador. Ele percebia tudo.– Torak... – ofegou. Sua mão se estendeu, os dedos quentesagarrando-se aos de Torak tão ávidos quanto uma criança. Torakconteve-se. Filhos seguram a mão dos pais, e não o contrário.Ele tentava ser prático: ser um homem em vez de um menino.– Eu ainda tenho algumas folhas de milefólio – disse ele, tateandoa bolsa de remédios com a mão livre. – Talvez isso detenha o...– Fique com elas. Você também está sangrando.– Não dói – mentiu Torak. O urso o jogara contra um pé debétula, machucando suas costelas e ferindo profundamente o antebraçoesquerdo.– Torak... parta. Agora. Antes que ele volte.Torak encarou-o. Abriu a boca, mas não emitiu nenhum som.– Você precisa – insistiu o pai.– Não. Não. Não posso...– Torak... estou morrendo. Estarei morto quando o sol nascer.Torak apertou a bolsa de remédios. Havia um rugido em seusouvidos.– Pa...– Dê-me... o que preciso para a Jornada da Morte. Depois peguesuas coisas.A Jornada da Morte. Não. Não.Mas o rosto do pai estava inflexível.– Meu arco – pediu. – Três flechas. Você... fica com o resto.Aonde estou indo... a caça é fácil.Caiu uma lágrima no joelho da perneira de pele de gamo deTorak. Enfiou a unha do polegar na carne. Doeu. Forçou-se a se concentrarnisso.– Comida – arfou seu pai. – A carne seca. Você... leva toda.O joelho de Torak começou a sangrar. Ele continuou cutucando.Tentava não imaginar seu pai na Jornada da Morte. Tentava não seimaginar sozinho na floresta. Tinha apenas doze verões de idade.Não conseguiria sobreviver sozinho. Não sabia como.– Torak! Mexa-se!Pestanejando furiosamente, Torak alcançou as armas do pai e ascolocou a seu lado. Dividiu as flechas, furando os dedos nas afiadaspontas de sílex. Então colocou a tiracolo sua aljava e seu arco, e engatinhousobre os destroços para apanhar sua machadinha negra de basalto.Sua mochila de madeira de aveleira fora destruída no ataque;teve de abarrotar tudo o mais em seu gibão de couro, ou amarrar nocinturão.Alcançou o seu saco de dormir feito de couro de rena.– Leve o meu – murmurou o pai. – Você nunca... consertou oseu. E... troque as facas.Torak ficou horrorizado.– A sua faca não! Vai precisar dela!– Você precisará mais do que eu. E... será bom ter algo seu naJornada da Morte.– Pa, por favor. Não...Na floresta, um graveto estalou.Torak girou.A escuridão era total. Onde quer que olhasse as sombras tinhamforma de urso.Não havia vento.Não havia canto de pássaro.Apenas o crepitar do fogo e a batida de seu coração. A própriafloresta prendia a respiração.Seu pai lambeu o suor dos lábios.– Ele não está aqui – disse ele. – Em breve. Ele virá me buscar embreve... Depressa. As facas.Torak não queria trocar as facas. Isso seria um ponto final. Seupai, porém, olhava-o com uma intensidade que não admitia recusa.Apertando as mandíbulas com tanta força que doeu, Torakpegou a própria faca e colocou-a na mão de Pa. Em seguida, desamarroudo cinturão do pai a bainha de couro de gamo. A faca de Paera bela e mortal, com a lâmina de ardósia azul raiada na forma defolha de salgueiro, e o cabo de chifre de veado-vermelho preso comtendão de alce para uma melhor empunhadura. Enquanto Torakolhava para ela abaixo, a verdade o atingiu. Ele estava se preparandopara uma vida sem Pa.– Não vou deixar você – berrou. – Vou enfrentar ele, eu...– Não! Ninguém consegue enfrentar esse urso!Corvos voaram das árvores.Torak prendeu a respiração.– Escute com atenção – sibilou seu pai. – Um urso... qualquerurso... é o caçador mais forte da floresta. Você sabe disso. Mas esseurso... muito mais forte.Torak sentiu os pêlos dos braços se eriçarem. Olhando parabaixo nos olhos do seu pai,viu as pequeninas veias encarnadas, e, nocentro, a insondável escuridão.– O que quer dizer? – sussurrou. – O que...– Ele está... possuído. – O rosto do pai era assustador; ele nãoparecia mais com o Pa. – Alguns... demônios... do Outro Mundo...penetraram nele e o tornaram mau.Uma brasa faiscou. As árvores escuras inclinaram-se mais pertopara escutar.– Um demônio? – perguntou Torak.Seu pai fechou os olhos, reunindo forças.– Ele vive apenas para matar – falou, finalmente. – Com cadamorte... seu poder crescerá. Ele matará... tudo. A presa. Os clãs.Todos morrerão. A floresta morrerá... – deteve-se. – Em uma lua...será tarde demais. O demônio... muito forte.– Uma lua? Mas o que...– Pense, Torak! Quando o olho vermelho está mais alto no céu,é quando os demônios são mais fortes. Você sabe disso. É quando ourso será... invencível. – Pelejou para respirar. Sob a luz da fogueira,Torak viu a pulsação latejando em seu pescoço. Tão fraca: era comose fosse parar a qualquer momento. – Preciso que você... jure umacoisa – disse Pa.– Qualquer coisa.Pa estancou. – Siga para o norte. Muitos dias de caminhada.Encontre... a Montanha... do Espírito do Mundo.Torak encarou-o. – O quê?Os olhos de seu pai se abriram, e ele fitou entre os galhos acima,como se enxergasse coisas que ninguém mais podia. – Encontre-a –repetiu. – É a única esperança.– Mas... ninguém nunca a encontrou. Ninguém pode.– Você pode.– Como? Eu não...– O seu guia... vai encontrar você.Torak ficou aturdido. Nunca antes seu pai falara daquele modo.Ele era um homem prático; um caçador.– Não compreendo nada disso! – bradou. – Que guia? Por quepreciso encontrar a montanha? Estarei a salvo lá? É isso? A salvo dourso?Lentamente, o fitar de Pa deixou o céu e foi pousar no rosto dofilho. Parecia que ele estava imaginando o quanto mais Torak podiaagüentar.– Ora, você é muito jovem – disse ele. – Eu pensava que tinhamais tempo. Há muita coisa que não contei a você. Não... Não váme odiar depois por causa disso.Torak olhou-o horrorizado. Então, de um salto, ficou de pé.– Não posso fazer isso sozinho. Eu não deveria tentar encontrar...?– Não! – exclamou seu pai com uma força surpreendente. – Todaa sua vida eu mantive você afastado. Mesmo... do nosso próprio Clãdo Lobo. Permaneça longe dos homens! Se eles descobrirem você...o que você pode fazer...– O que quer dizer? Eu não...– Não há tempo – cortou o pai. – Agora jure. Sobre minha faca.Jure que vai encontrar a montanha, ou morrer tentando.Torak mordeu o lábio com força. A leste, por entre as árvores,uma luz cinzenta aumentava. Ainda não, pensou ele, em pânico. Porfavor, ainda não.– Jure – ciciou seu pai.Torak ajoelhou-se e apanhou a faca. Era pesada: a faca de umhomem, grande demais para ele. Desajeitadamente, passou-a peloferimento no antebraço. Em seguida, colocou-a sobre o ombro, ondea tira de pele de lobo, o totem de seu clã, estava cerzida ao seu gibão.Com uma voz insegura, ele fez o juramento.– Juro, pelo meu sangue nesta lâmina, e por cada uma de minhastrês almas... que encontrarei a Montanha do Espírito do Mundo. Oumorrerei tentando.Seu pai expirou. – Ótimo. Ótimo. Agora. Coloque as Marcas daMorte em mim. Depressa. O urso... não está longe.Torak sentiu a salgada ardência de lágrimas. Furiosamente,limpou-as esfregando-as.– Não tenho nenhum ocre – murmurou.– Pegue... minha.Desordenadamente, Torak encontrou a pequena bolsa de remédiofeita de ramificação de galhada de veado que fora de sua mãe.Desordenadamente, arrancou a tampa de carvalho e sacudiu umpouco do ocre vermelho na palma da mão.De repente, parou.– Não posso.– Pode sim. Por mim.Torak cuspiu na mão e fez uma pasta pegajosa com o ocre, osangue vermelho-escuro da terra, em seguida desenhou na pele deseu pai os pequenos círculos que ajudariam as almas a se reconhecereme permanecerem juntas após a morte.Primeiro, o mais delicadamente que pôde, removeu as botas decouro de castor do pai, e desenhou um círculo em cada calcanhar paraindicar a alma-nome. Depois desenhou outro círculo acima do coração,para indicar a alma-clã. Isso não foi fácil, pois o peito de seu paitinha uma cicatriz de um antigo ferimento, e por isso Torak conseguiuapenas um oval inclinado para um lado. Esperava que aquilo fosse osuficiente.Por último, fez a marca mais importante de todas: um círculo natesta para indicar a Nanuak, a alma-mundo. Quando terminou, eleestava engolindo lágrimas.– Melhor – murmurou o pai. Mas Torak percebeu com uma pontadade terror que a pulsação no pescoço dele estava mais fraca.– Você não pode morrer! – explodiu Torak.Seu pai olhou-o lastimoso e saudoso.– Pa, eu não vou deixar você, eu...– Torak. Você fez um juramento. – Novamente, fechou os olhos.– Agora. Você... fique com o chifre de remédio. Não preciso maisdele. Pegue suas coisas. Apanhe água para mim no rio. Depois... vá.Não vou chorar, disse Torak a si mesmo, ao enrolar o saco dedormir do pai e amarrá-lo nas costas; empurrou seu machado paradentro do cinturão; enfiou a bolsa de remédio dentro do gibão.Levantou-se e procurou o cantil de couro. Estava retalhado.Teria de trazer água em uma folha de azeda. Estava para ir, quando opai murmurou seu nome.Torak virou-se. – Sim, Pa?– Lembre-se. Quando estiver caçando, olhe atrás de você. Eu...sempre lhe falo. – Forçou um sorriso. – Você sempre... esquece.Olhe atrás de você. Sim?Torak fez que sim com a cabeça. Tentou retribuir o sorriso. Emseguida, foi cambaleante por entre as samambaias molhadas em direçãoao riacho.A luz aumentava e o ar tinha um odor fresco e doce. À sua voltaas árvores sangravam: escoando o dourado pinho-sangue pelostalhos que o urso lhes infligira. Alguns dos espíritos das árvoresgemiam baixinho na brisa da alvorada.Torak chegou ao riacho, onde a névoa flutuava acima das samambaiase os salgueiros arrastavam seus dedos na água gelada. Olhandorapidamente em volta, arrancou uma folha de azeda e seguiu em frente,as botas afundando no macio barro vermelho.Congelou.Ao lado de sua bota direita estava a pegada de um urso. Umapata dianteira: duas vezes o tamanho de sua própria cabeça, e tãofresca que ele podia ver os pontos onde as longas e ferozes garrashaviam perfurado profundamente o barro.Olhe atrás de você, Torak.Ele girou.Salgueiros. Amieiro. Pinheiro.Nada de urso.Um corvo voou baixo até um galho ali perto, fazendo com queele desse um pulo. A ave recolheu suas asas negras e fitou-o comolhos grandes e redondos. Em seguida sacudiu a cabeça, grasnouuma vez, e voou para longe.Torak olhou na direção que ele parecera indicar.Teixo escuro. Abeto gotejante. Denso. Impenetrável.Bem no fundo, porém – não mais do que dez passos de distância–, um agitar de galhos. Havia algo ali. Algo enorme.Tentou evitar que os pensamentos de pânico transbordassem,mas sua mente se tornara vazia.O problema com um urso, seu pai sempre dizia, é que ele consegue se movimentartão silenciosamente quanto a respiração. Ele pode estar observando você adez passos de distância sem que você perceba. Contra um urso não há nenhuma defesa.Você não é capaz de correr mais depressa. Não consegue subir mais alto. Nãopode lutar com ele sozinho. Tudo que pode fazer é aprender os modos dele, e tentarconvencê-lo de que você não é uma ameaça nem é uma presa.Torak forçou-se a ficar imóvel. Não corra. Não corra. Talvez elenão saiba que você está aqui.Um leve sibilar. Novamente os galhos se agitaram.Ele ouvia o furtivo farfalhar enquanto a criatura avançava em direçãoao abrigo: em direção a seu pai. Esperou num rígido silêncio o ani-mal passar. Covarde!, gritou no interior de sua cabeça. Você o deixoupassar sem mesmo tentar salvar Pa!Mas o que você podia fazer?, perguntou a parte menor de suamente que ainda conseguia pensar direito. Pa sabia o que aconteceria.Foi por isso que mandou você apanhar água. Sabia que a feraestava vindo atrás dele...– Torak! – surgiu o grito desesperado de seu pai. – Corra!Corvos irromperam das árvores. Um rugido sacudiu a floresta –sem parar, até a cabeça de Torak arrebentar.– Pa! – gritou ele.– Corra!Novamente a floresta foi sacudida. Novamente surgiu o grito deseu pai. E então, parou de repente.Torak tapou a boca com o punho.Por entre as árvores, viu de relance uma enorme sombra escuranos destroços do abrigo.Virou-se e correu.

19.3.09

Fugalaça

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Mayra Dias Gomes estreiou na literatura desenhando um retrato da juventude contemporânea e de seu desespero. Com linguagem pop, ágil e atual, ela narra a surpreendente história de Satine, espécie de alter-ego que mergulha fundo no clichê sexo, drogas e rock’n’roll após perder o pai aos 11 anos e ver sua vida tomar novos rumos.
Ao mesmo tempo romance e suspense.
Todo mundo se identifica em algum momento com Satine. Desde a falta do pai até o amor insano, a busca incessante pela felicidade.Com palavras simples um linguajar agradável,a autora consegue mesclar romance,dor, humor.Um mergulho no inferno que se fez poesia e redenção.Inspirada na própria vida, Mayra Dias Gomes retrata em Fugalaça uma juventude desesperada, sem perder o humor.
Até os 17 anos, Mayra Dias Gomes não parecia interessada em seguir a carreira do pai, o dramaturgo, romancista e autor de novelas Dias Gomes. Na verdade, não parecia interessada em seguir caminho nenhum - sem o pai desde os 11 anos (morto em um acidente de carro em São Paulo), a carioca viveu uma temporada com a mãe, Bernadeth Lyzio, nos Estados Unidos até apostar em um percurso pessoal.
Inicialmente, Mayra dividiu-se entre o Rio e São Paulo, estudando em supletivos e descobrindo as tentadoras atrações da noite e seu paraíso artificial, como música e drogas. A diversão, no entanto, era apenas aparente: em um ambiente que exibia descontração, Mayra ressentia-se ainda de sua introspecção, agravada com o distanciamento do pai que pouco conseguiu conhecer.
Sua salvação foi escrever um romance, que, em meio à felicidade aparente oferecida por ecstasy e por uma paixão não correspondida por um roqueiro, escreveu Fugalaça, retrato da juventude contemporânea e de seu desespero. Foi uma experiência necessária, pois enfrentou seus pavores até descobrir a verdadeira liberdade.' Em outras palavras, 'limpar o presente'.
Se o resumo da história não inspira nenhuma novidade literária (há, até, um excesso de detalhes), a franqueza da autora e o fôlego de sua escrita são promissores. 'Há dor, há confronto, conflito, cinismo, humor e coragem neste livro', observa a também escritora Fernanda Young, no texto de apresentação. 'O inferno que Mayra Dias Gomes relata, ou denuncia, só faz sentido ao tornar-se poesia. E poesia sobrevive à perda.'
De fato, o relato tem o tom de redenção. A prática da escrita sempre a acompanhou, desde escrever diários durante boa parte de sua existência, até o típico exercício do moderno escritor que é a manutenção de um blog, mas agora ela está mais serena.
O próximo livro, por exemplo, não terá drogas, sexo ou rock. Também terá uma gestação menos tumultuada - para Fugalaça, ela conta que viveu uma rotina pouco usual. 'Primeiro, escrevia muito e jogava tudo fora, pois não encontrava um eixo. Até que, cansada de não sair do lugar, resolveu produzir sem parar, escrevendo freneticamente e só parava quando atingisse a metade da história. Quando chegou a esse ponto e, finalmente, leu o que estava pronto, sentiu-se satisfeita com o resultado.
Mayra pretende ainda honrar a tradição literária iniciada pelo pai. Jura não se sentir intimidada pelo gigantismo da obra dele. E, se não segue pelo mesmo caminho, lembra a principal característica que ganhou do trabalho de Dias Gomes: a honestidade.

(Mayra Dias Gomes; Editora Record)
 

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